domingo, junho 18, 2006

Da Beleza na Escuridão

Ando ocupado. São várias as idéias, mas não tenho publicado aqui. Para romper o marasmo, segue uma adaptação livre de um episódio da série televisiva Babylon 5 escrita por mim em dezembro de 2003. Espero que gostem.

Dedicado a Lucia Grillo.

UMA LIÇÃO DE KOSH

A situação não estava nada boa. Estávamos vivendo um momento cheio de problemas e nunca havíamos passado por uma situação tão difícil antes. Não parecia haver muitas opções boas para nossas questões. Kosh veio me encontrar e me disse que era hora de uma nova lição. Eu disse a ele que o momento era inoportuno, mas ele se mostrou irredutível:

- Os momentos difíceis são os mais indicados para o aprendizado.

Um argumento forte, mas que não me parecia adequado naquele momento. A responsabilidade derivada dos problemas nos quais eu estava imerso parecia indicar que o tempo que eu ficaria com Kosh seria um desperdício. Apesar disso, decidi ir com ele, pois sabia que uma eventual recusa poderia desencadear o término do meu "treinamento" com Kosh.

Paramos na frente do elevador perto da cabine de Kosh. Ele indicou a porta apenas movendo sua cabeça e eu entrei, seguido por ele. Para minha surpresa, Kosh escolheu um andar que pertencia a um setor da estação espacial que não era habitado por humanóides. Tudo parecia indicar que a "lição" de hoje seria no mínimo curiosa.

Saímos do elevador e senti imediatamente um odor muito forte. Ao perceber que o cheiro fétido parecia de alguma coisa morta, fiz menção de usar meu comunicador para avisar à segurança. Kosh percebeu isso e disse:

- O cheiro que você sente é normal aqui. Esse setor é habitado pelos Urus.

Os Urus eram a raça mais repugnante para os humanos. Porém, como o objetivo da nossa estação espacial era intensificar o comércio e a troca de culturas entre os povos da federação, eles tinham seu espaço garantido aqui. Nas reuniões entre os embaixadores, o líder Uru usava sempre um traje pressurizado, mesmo sabendo que a composição de nossa atmosfera artificial era perfeitamente adequada para ele. O fato é que seu cheiro era tão repugnante para a maioria dos outros embaixadores que seria impossível discutir alguma coisa caso ele se apresentasse sem um traje. Além disso, o hábito de se alimentar exclusivamente de carne em decomposição não é algo agradável para a maioria dos outros seres da estação.

O setor no qual estávamos nem parecia fazer parte da estação. Além do cheiro, o nível de luminosidade estava baixo e os corredores estavam abarrotados de diversas caixas que pareciam conter peças ou algo assim. Kosh me levou por um dos corredores principais e entramos em corredor mais fino e mais escuro. Fiquei pensando o que iríamos fazer ali e como Kosh conhecia aquele setor. Paramos em frente a algo que parecia com uma entrada para uma sala. Meu "instrutor" me deu uma pequena caixa metálica com algumas inscrições estranhas que estava presa ao seu traje e disse:

- Quando o Uru pedir o pagamento, dê essa caixa para ele.

Bufei ao perceber que teria realmente que entrar naquele buraco escuro e imundo, mas decidi continuar. Afinal, se já tinha chegado até ali com segurança, não deveria temer ir até o fim.

Dentro do buraco o cheiro era um pouco melhor, mas não era possível enxergar quase nada. Fiquei imaginando o que iria acontecer, uma vez que não tenho a menor idéia de como poderia me comunicar adequadamente com um Uru sem um transcoder.

Após alguns instantes parado, uma luz azul começou a aparecer em um canto daquele estranho cômodo. Olhei para o local de onde vinha e vi um Uru sentado no chão, imóvel e em total silêncio. A luz aumentou e vi que estávamos sozinhos dentro daquele buraco. Não sei se aquela luminosidade saía de alguma fonte artificial ou do próprio Uru. De qualquer forma, nunca tinha visto nada igual antes.

Consegui enxergar que o Uru estava sentado em uma área um pouco mais alta que o resto do cômodo e vi também que havia outra área elevada em frente a ele. Lentamente, sentei naquele patamar, com as pernas cruzadas, na posição de quem vai meditar. Então finalmente o Uru se movimentou e esticou um de seus membros em minha direção e abriu a pata. Lembrei da caixa que Kosh havia me dado na entrada e a coloquei na pata do Uru. Ele olhou a caixa pelos seus seis lados e aparentemente leu as inscrições da parte externa. Depois, abriu a caixa lentamente e colocou na boca o conteúdo. Não consegui ver muito bem o que era e fico feliz por isso.

Após alguns momentos saboreando seu pagamento, o Uru voltou para sua posição inicial e a luz azul diminuiu um pouco. Tudo ficou parado e voltei a pensar nos problemas da estação. Então o Uru levantou um pouco a cabeça e comecei a ouvir um som vindo dele. Não sabia que Urus podiam emitir sons audíveis para humanos. O som aumentou e invadiu o ambiente onde estávamos. Parecia um cântico muito triste e lento, mas algumas partes eram um pouco mais rápidas. Fechei os olhos e permiti que a música me invadisse. Não sei quanto tempo passou e não tenho como descrever a música que ouvi. Porém, posso dizer que foi o conjunto de sons mais maravilhoso que já ouvi. As variações dos padrões da música me fizeram sentir emoções indescritíveis e pareciam ir fundo na minha alma.

A música foi mudando e reduzindo em volume até terminar. Eu me sentia estranhamente diferente, em êxtase. Abri os olhos e olhei para o Uru. Ele tinha em seus membros inferiores um bebê Uru. Fiquei observando a criatura, que estava envolta por uma gosma grossa e se movia lentamente. A luz azul aumentou um pouco e percebi que tudo havia terminado.

Saí pela abertura e vi Kosh me esperando. Ele moveu sua grande cabeça brilhante para perto da minha e disse:

- Você deve aprender como ver beleza na escuridão.

Freqüentemente Kosh é enigmático quando fala, mas dessa vez pude entender perfeitamente o que ele queria dizer.